A TIMIDA CEGONHA-PRETA
The shy Black Stork
CEGONHA-PRETA
(Ciconia nigra /
1758)
Como já referi em anteriores artigos, as aves sempre tiverem em mim um
inexplicável encanto. Um fascínio difícil de entender, e que me marca, pelo que
soube (relatado por familiares), desde os meus dois anos. Hoje decidi escolher,
a Cegonha-preta. Não que tenha tido alguma relação directa com esta ave, em
concreto e infelizmente, mas porque as cegonhas em geral ao longo da última
década têm sido das aves que mais avistei no seu ambiente natural. Todavia,
estas observações cingiram-se exclusivamente a cegonha-branca (Ciconia ciconia)…
nossa conhecida e comummente espécie abundante em Portugal. Talvez por isso,
tenha optado por divulgar a sua congénere mais rara entre nós… a Cegonha-preta.
É uma ave pertencente à ordem das Ciconiiformes,
onde se incluem famílias como as Cegonhas e as Íbis; visto que as Garças estão
agora excluídas, apesar de já terem pertencido a esta ordem. Tipicamente são
aves altas, médio porte, pernas longas e pescoço comprido. Os bicos variam de
forma, mas são em regra geral compridos, adaptados ao seu processo alimentar e
morfologicamente em consonância com as características do seu habitat natural.
As asas são alongadas e de uma envergadura superior ao seu corpo. Comunicam
fundamentalmente, através de rituais e manifestações exibicionais exuberantes; os sons que emitem em termos de vocalização são muito poucos; o que não é comum
entre as aves... cingem-se a baixos grunhidos, sibilam ou apenas leves assobios.
Considerada rara ou pouco abundante no nosso território, não é uma espécie
classificada como ameaçada a nível mundial. O seu estatuto pelo IUCN é “Pouco
Preocupante”. Estende-se ao longo de faixa mais central da Eurásia. É
uma ave sobretudo migratória. Usando a Europa e a Ásia como locais de
reprodução, entre Março/Abril, até aos primeiros sinais do período invernal que
decorre entre Setembro e finais de Outubro. Deslocando-se no período da
migração para África em duas rotas distintas e precisas, uma percorrendo o
sentido mais ocidental da Europa até aos países do centro africano ocidentais e
outra seguindo uma rota no sentido oriental de África sobre Nilo e a Índia
(locais estes como: India, Myanmar, Laos, Vietnam, norte da Tailandia (?) e sul da China; onde alguns indivíduos escolhem para permanecer até ao regresso
às zonas de nidificação). Alguns bandos utilizam igualmente a zona subsariana (o sul do deserto do Sáara) para
se dirigirem tanto a ocidente como a oriente desses locais migratórios precisos
em África (Egipto, Quénia, Etiópia, Sudão, Chade, Niger, Nigéria, Benin, Togo, Burkina Faso, Gana ou Costa de Marfim). Apenas existem duas populações que se mantêm residentes e que não
optam anualmente pela migração: estão fixadas, uma na Península Ibérica e outra
na África do Sul. Apesar da espécie não se encontrar com um estatuto preocupante,
calculam-se existirem entre 30/34 mil a 45.000 indivíduos (a Europa, com uma
variação significativa com pelo menos, cerca de 7.000 a pouco mais de 20.000
casais reprodutores). As populações tanto em Portugal e Espanha como na África
do Sul estão protegidas por lei. O efectivo desta ave na nossa Península é
considerado um núcleo isolado do ponto de vista geográfico dos restantes da
Europa. No nosso país, estão estimados cerca de 90 a 110/115 casais; este
número em termos de indivíduos poderá ser maior durante o período de migração. Tendo
em conta este indicador reduzido, é por esta razão que a espécie está
classificada entre nós como “Vulnerável”, pelo “Livro
vermelho dos Vertebrados de Portugal”. Porém, a flutuação da população
mundial é inconstante, em parte devido a núcleos dispersos… depois as ameaças
constantes da destruição do habitat e da progressão humana seja por processos
de urbanização como na expansão agrícola têm vindo afectar os lugares ideais de
nidificação da espécie. A caça não deixa de existir, por incrível que pareça a
esta ave. As edificações eléctricas nas rotas de migração ou nas zonas de
nidificação também acabam por causar centenas de mortes por colisão com os
cabos de alta tensão, tanto a nível de aves adultas como juvenis ou jovens
adultos.
As cegonhas-pretas são excelentes voadoras, pássaros resistentes… durante
as suas rotas de migração é normal percorrerem distancias diárias que podem ir
dos 100 a 250 km. Aproveitando as correntes de ar quente para atingirem
altitudes consideráveis. Pode-se observar em voo, que tendem a deixar a pescoço
esticado e inclinado para baixo com a cabeça abaixo da linha dos seus corpos.
Mais uma vez, diferentemente, das suas congéneres, não voam em organizações
formadas, nem sequer em grandes bandos.
No solo, ao contrário, agem como as outras cegonhas… são elegantes na sua
caminhada, com passos pausados e constantes. Permanecem direitas, paradas,
muitas vezes apenas sobre uma perna… tal comos os flamingos, que também já
fizeram parte desta ordem zoológica.
Outra curiosidade, é que esta espécie não migra na mesma altura que a
Cegonha-branca, mas sim, um pouco mais tarde; mais ou menos duas semanas
depois. Contudo, podem ser acompanhadas por aves necrófagas como algumas
espécies de abutres, que usam as mesmas rotas de migração.
A Cegonha-preta é de um porte um pouco menor que a nossa conhecida
cegonha-branca. É uma ave com um comprimento de 95 ou 100 cm, que em voo toma
uma envergaduras de asas entre os 145 a 155 cm. Pesa em média uns 3 kg. Em
altura não passa pouco mais de um metro, cerca de 97/100, 102 cm. A sua
coloração é bastante característica; o corpo é de plumagem negra na cabeça,
pescoço, dorso, as asas são também negras. Em certas condições atmosféricas e
de luminosidade intensa surgem tons verdes, roxos e vermelhos que se tornam brilhantes,
metálicos ou lustrosos sobre penas. A zona baixa do peito, a barriga, como as
axilas e por baixo da cauda são brancas. Nas patas e no bico pontifica o
vermelho, mas na estação invernal estas cores mudam e o vermelho transforma-se
em castanho. A pele nua que contorna os olhos é de um vermelho intenso. Estas
aves têm normalmente as penas do peito longas e irregulares, são usadas nos
rituais da corte do casal. Não existe dimorfismo entre os géneros sexuais,
excepto no tamanho do macho que é um pouco maior que a fêmea, sem este pequeno detalhe
poderemos dizer que são iguais.
Os juvenis ou os jovens adultos têm uma plumagem negra-acinzentada sem o
brilho das penas dos adultos, as patas e o bico são esverdeados. Por volta dos
12 meses as penas começam adquirir então uma coloração brilhante.
A Cegonha-preta, tal como as cegonhas em geral, costumam formar pares
durante a época da reprodução, podendo manterem-se juntas nas temporadas
seguintes… são por natureza monogâmicas (mas isto, não quer dizer que se
mantenham juntas para o resto da vida). Curiosamente, estes pares separam-se na
altura da migração, voando separados. Os ninhos fixos e permanentes são o ponto
de regresso e reunião. Ninhos estes, que podem ser mais do que um, incluindo na
mesma árvore, e usados em diferentes anos. Sabe-se que são uma espécie muito
territorial, e que demarcam as zonas de reprodução de 1 a 2,7 km entre eles. Com
um habitat característico, vivem essencialmente, perto dos cursos de água, montados, matas ribeirinhas, correntes ou escarpas em locais montanhosos desde que rios ou
riachos se mantenham por perto, também áreas pantanosas. Em Portugal, estas aves encontram-se com maior
incidências ao longo do Douro Internacional, do Tejo Internacional e do Vale do
Guadiana, as bacias ou os estuários destes rios são também importantes locais
de residência da espécie. Os nossos lagos, rios, albufeiras ou lagoas são
igualmente zonas privilegiadas, desde que a presença humana seja diminuta e a
perturbação urbana não se faça sentir de forma hostil perto dos ninhos… talvez
por isso, estudos indicam que a proximidade da actividade humana não acontece a
menos de 2,5 km dos locais residentes. Não excluem as zonas montanhosas e
serrados perto de cursos significativos de água. As florestas ou matas estão
entre as preferências nos biomas escolhidos pela espécie; em especial as
árvores de grande porte, antigas e altas… permitindo assim a construção dos
seus ninhos, que podem tomar grandes dimensões; todos os anos são de novo
fortalecidos aumentando desta forma a seu diâmetro e profundidade. Em Portugal,
na bacia do rio Tejo, os estudos são contraditórios, mas crê-se que seja pouco
frequente ou mesmo rara, aproveitam as
saliências rochosas das serras, nos locais mais inóspitos e protegidos por
vegetação costeira ou zonas densas de pinheiros e eucaliptos; árvores de
dimensões razoáveis. A sul, até ao vale do Guadiana, os montados de azinheiras,
sobreiros ou oliveiras revelaram-se os locais eleitos por esta ave. Enquanto no
Douro internacional, são as áreas com maior concentração de mato ou matagais
que permitem a fixação da espécie. É por esta escolha tão diversificada de
topologias de terrenos e de biomas tão diferentes que se torna difícil observar
estas aves… são na realidade, uma espécie de comportamentos esquivos e hábitos
reservados.
Por alturas do final de Fevereiro, meados de Março, depois de regressarem
das jornadas migratórias, iniciam de imediato as manifestações de acasalamento
e o processo de reprodução. É neste período que podemos observar com maior
visibilidade os tais rituais de cortejamento. Nesta fase, é quando se podem
ouvir os raros momentos sonoros que estas aves produzem; com estalidos do bater
dos bicos erguidos, individualmente ou em conjunto, como entre casal… incluindo
durante a noite. A construção do ninho é da responsabilidade tanto do macho como da
fêmea. Em geral é o macho que escolhe a localização do mesmo, todavia, os
cuidados com a sua construção são controlados pela fêmea. O período de
incubação dura em média 32/38 dias, por ambos os progenitores. A única postura anual
varia entre 2 e os 5 ovos, com um formato oval bem definido e esbranquiçados, durante período à volta de
48 horas. Há pormenores curiosos associados a estes cuidados; como em tempo de
calor excessivo, os pais chegam a regurgitam água sobre os ovos para os
arrefecer… o que é um comportamento verdadeiramente extraordinário, e que mais
uma vez vem a corroborar que o instinto animal é muito mais do que uma básica
reacção intuitiva ( e sim, uma complexa percepção da vida). Os ninhos podem
ganhar um diâmetro de 1,5 m e com cerca de 1 metro de espessura; feito de
ramos, terra, musgo e até papel… podendo ser reutilizados ao longo de várias
temporadas. Os juvenis são alimentados por ambos os pais que regurgitam grandes
quantidades de comida de cada vez para o fundo do ninho, de onde estes filhotes
se alimentam. As crias da Cegonha-preta não se atacam umas às outras nem
competem entre si pela comida. Há registos de que os pais podem matar ou
eliminar uma das crias (a mais nova ou mais frágil) em situações de menor
abundância de alimentação, porém, este comportamento muito poucas vezes foi
observado. Os juvenis adquirem a sua autonomia e antecipando a sua
independência entre os 63 e os 71 dias, que ocorre em média por volta dos 3
meses, durante este período mantêm-se dependentes dos progenitores. A
maturidade sexual e reprodutiva ocorre entre os 3 e os 5 anos de idade.
Outra curiosidade registada, indicava que por vezes, e provavelmente de uma
forma inadvertida, havia casais de cegonhas-pretas que ocupavam os ninhos de
outras aves muito perto das redondezas onde faziam nidificação: como da
Águia-negra-asiática, ou a Ave-martelo (Cabeça de martelo, em tempos foi associado
à mesma ordem que as cegonhas).
De actividade diurna, estas aves alimentam-se preferencialmente, junto do
leito dos ribeiros de água límpida, dos rios, riachos de pouca corrente, cursos
de água pouco profunda, albufeiras mais isoladas. O mato, os mantados ou os
sopés das áreas mais rochosas também se oferecem como alternativas na busca de
alimento. Utilizam como ferramenta de caça, o sentido mais adaptado: a visão. Fazem-no com maior assiduidade de manhã, entre as 9h.00 e as 12h.00.
Esta procura pode levá-las afastarem-se quase duas dezenas de quilómetros da
zona de nidificação, mas raramente ultrapassam a meia dúzia de quilómetros, até
porque é uma ave muito territorial e protectora do ninho. As presas típicas da
Cegonha-preta baseiam-se em pequenos peixes, crustáceos, anfíbios e insectos e
mesmo pequenos roedores e aves de pequeno porte; em situações de maior escassez
ou oportunidades… também por estas razões, se lhe atribui a definição de uma
ave carnívora. Mas convém sublinhar que, a sua dieta principal são os peixes;
fundamentalmente, na altura em que cuidam das suas proles.
A esperança de vida da Cegonha-preta em liberdade ronda os 18 anos, todavia
existem registos em cativeiro de uma longevidade de 31 anos… o que é
surpreendente, dado que é um número muito perto do dobro da idade em estado
selvagem.
É uma ave do topo da cadeia alimentar, pois não tem predadores naturais. A única ameaça real é somente... o Homem.
Os perigos são vários que têm vindo a pôr em causa a estabilidade do
núcleos e das populações sejam elas migratórias ou residentes. A maior ameaça é
sem duvida a destruição e consequentemente a degradação do seu habitat; seja
pela desflorestação, seja pela constante intervenção ou presença humana, como
pela acção reincidente de fogos criminosos ou de causas imprudentes. A
actividade industrial, agrícola e recreativa também são factores de risco; não
só pela perturbação como do insucesso reprodutivo perto dos locais de
nidificação. Sabe-se igualmente, que o efeito dos pesticidas agem como um dos
motivos de mortalidade de maior negligência sobre a generalidade das espécies,
e a Cegonha-preta não foge a essa fatalidade. Também, os já mencionados postes
eléctricos, causadores da morte de tantas aves, fazem parte dos índices
negativos da sobrevivência das espécies selvagens. Por fim, a caça ilegal, que
continua a ser o mais hediondo dos flagelos que atinge a conservação das
espécies. No fundo, todas estas ameaças descritas fazem parte do destino das
populações desta ave.
Curiosidade: uma das ameaças mais perturbadoras e surpreendentes, são as infestações por um parasita trematode, chamado: Cathaemasia hians, que surge normalmente em espécies de peixes e que na regurgitação dos alimentos pode afectar as crias pequenas ou mesmo juvenis.Ao que parece, foi um parasita detectado pela primeira na parte superior do esófago de um sub-adulto... em Espanha (hoje já em outras áreas da Europa). Os estudos existentes não apontam para infecções na Cegonha-branca, o que leva a querer que a Cegonha-preta parece ser o principal hospedeiro. A causa estima-se que seja o tipo de alimento e a temperatura que o processo digestivo atinge.
É preciso continuar com as medidas proteccionistas e conservacionistas.
Acentuar a legislação penal sobre todo aquele que causar danos sobre este
património vivo de importância a nível global e que habita o nosso território. Articular
leis que promovam maior envolvimento na protecção da vida selvagem. Explorar
condições que fomentem de forma cuidada o ecoturismo e a observação das aves.
Incentivar os meios de comunicação a dar com maior frequência algum destaque às
medidas de conservação e de espécies ameaçadas em Portugal… e não só! Os censos
deviam ter periocidades mais frequentes e não intervalos tão distantes como têm
hoje em dia; pois ao ritmo com que as espécies de animais sofrem danos
irreversíveis nas suas populações mais difícil se torna adoptar medidas para
controlar a sua extinção ou evitar o perigo com que já se encontram ameaçadas. O
trabalho no terreno promovido pelo ICNF (Instituto de Conservação da Natureza e
Florestas), por outras entidades estatais ou organizações não-governamentais é
fundamental, não só em matéria de estudos, registos e identificação genética,
como na importante monitorização dos indivíduos… trabalho este, do seguimento
das aves via satélite e do anilhar de exemplares, de uma importância capital
para percebermos melhoras razões da sua dispersão e as condições da sua
migração ou as áreas de nidificação, como também; podermos interpretar melhor a
situação do ecossistema onde estão envolvidas e o estado da fauna e da flora
envolventes. Só se entendermos bem esta biodiversidade e o estado dela podemos
agir com maiores resultados positivos. Quanto maior for o conhecimento sobre a
espécie maior será a percepção sobre a realidade ecológica no seu cômputo
geral.
Acredito com a intervenção de todos estes actores em cena, a sensibilização
de todos nós para este problema de sobrevivência das espécies que habitam o
território português, pode vir a originar um dos impactos mais altruístas que a
conservação e a preservação da vida selvagem necessita urgentemente.
Observar esta ave como disse, não é fácil. Mas a zonas mais remotas, mais
inóspitas do no interior do território português podem permitir a maravilhosa
experiência do seu avistamento. Por exemplo, no interior nordeste, em Trás-os-Montes:
o curso do Douro internacional, regiões como Miranda do Douro, a barragem de
Picote ou a barragem do Baixo Sabor e os seus concelhos limítrofes estão
identificadas como locais residentes desta espécie. Entre a Beira Baixa e a Beira
Transmontana, ao longo do Tejo internacional, a zona protegida das portas de
Rodão em Vila Velha de Rodão ou mesmo Monfortinho e o próprio vale do rio
Águeda, podem proporcionar estes avistamentos. No concelho de Lisboa ou Vale do
Tejo, apesar da frequência não ser tão expressiva, a zona de Abrantes e o
estuário do Tejo podem resultar numa surpresa. No Alentejo interior,
provavelmente teremos mais sorte porque as zonas de nidificação estão mais
diversificadas; e o vale do Guadiana, entre o Mourão e Mértola ocorrem com
alguma presença; tal como na zona circundante da barragem da Póvoa até Marvão,
Barrancos é outro dos locais, eventualmente na albufeira do Alqueva e a
barragem do Caia ou a lagoa dos Patos na freguesia de São Cristóvão ou Cabrela
podem ser zonas de uma ou outra incidência de áreas de nidificação. No Algarve,
a possibilidade depende mais do período de migração, e essas áreas são
sobretudo remotas; o conhecido cabo de São Vicente é uma forte esperança da localização
da magnifica Cegonha-preta.
Os meus agradecimentos à RTP pela disponibilidade deste excelente video.
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